Há palavras notáveis, como se fossem terramotos devastadores que abalam até alicerces enraizados no mais profundo solo. “Undo” é uma dessas palavras. Na tradução literal para português, “desfazer”. Parece-me que esta tradução não mostra o carácter poderoso da palavra quando formulada na língua inglesa. A etimologia ajuda na tarefa. “Do” é o termo inglês para “fazer”. Até aqui, parece que a tradução dos termos oferece uma perfeita analogia. Quando o “do” vem antecedido pelo “un”, esta partícula produz o efeito destruidor do que foi feito. Tal como na língua portuguesa, que o “desfazer” revela como é possível destruir o que foi laboriosamente feito.No entanto, “undo” enfatiza a ideia de devastação de um singelo momento demolidor. Não sei se será por reunir em apenas quatro letras a ruína do que foi desfeito. Já em português exige-se uma palavra mais comprida (oito letras), dando a ideia que o impulso destruidor passa por um esforço que, em muitos casos, fica aquém das energias que o dobro das letras (“undo” e “desfazer”) insinua. Desnudada a ideia que arruinar é um acto simples, muito mais simples do que construir algo. Num abrir e fechar de olhos, o que demorou tempo e consumiu energias é derrubado, semeando a desolação ao ver como tempo e energias dedicadas foram arrebatadas por um breve momento destruidor. “Undo” perfuma a devastação com a singeleza da palavra – tão curta, tão aparentemente anódina e, no entanto, tão avassaladora.
A deambulação etimológica transporta-me ao terreno do niilismo. De como toda a matéria se resume, em última análise, à destruição de tudo. É mais difícil construir, edificar, colaborar numa tarefa que traga obra feita. Leva tempo, exige o melhor da massa cinzenta, reúne a faceta imaginativa que desdobra a melhor essência da espécie humana. Por mais prodigiosa que seja a obra humana ou os feitos da natureza, o que fica à mostra é a sua delicadeza, como anos de esforço podem ser varridos num ápice por uma imparável força devastadora. Onde antes havia paciente construção humana as forças destruidoras esmeram uma fantasmagórico despovoamento. Anos e anos de labor humano diluídos em nada por instantes de imparável destruição.A desconstrução pode vir de actos humanos como ser obra da natureza. No sempre inacabado balanço da história da humanidade, ainda está para estimar o deve e haver entre o movimento construtivo que edifica e os impulsos ensandecidos dos Homens que ousam destruir o que levou tanto tempo a compor. As guerras são o paradigma da estupidez humana que vem recalcar o que foi erguido e entretanto derrubado por bombas que eclodem com a sua força arruinadora. Ou as relações humanas que se diluem em nada, quando o mais difícil foi cimentar pacientemente laços e afectos.
Impressiona-me mais a força destruidora da natureza, cataclismos vários que a mão humana é incapaz de domar. Terramotos que derrubam casas como se fossem frágeis castelos de cartas. Furacões que sopram ventos diabólicos que levantam árvores, telhados, pesadas estruturas metálicas como se tivessem a leveza de uns gramas. Cheias que tudo inundam e interrompem a vida habitual dos povos, cercados pela água enlameada que destrói haveres acumulados em anos e anos de suor do trabalho. Tudo se extingue na voracidade de uns instantes. A fragilidade humana diante da poderosa natureza, indomável quando grita através da fúria dos elementos.Dir-se-ia que a natureza que protesta encerra, no seu amplexo devastador, a essência niilista. O não que se sobrepõe à paciente elaboração das obras humanas que se entretecem à medida que as folhas do calendário são desfolhadas. Contudo, a manifestação da natureza, mesmo que tenha a voz ensurdecedora da destruição, é obra construtiva. É construção da natureza, mesmo quando a sua voz ecoa nos prantos das vítimas da devastação dos elementos indomáveis. Poderão os efeitos da natureza gritante estender a lamentação pela destruição entristecedora, o travo amargo de derrubar o que fora laboriosamente edificado. Há nisso um vento destruidor da gesta humana. Olhando apenas às forças da natureza, elas contêm algo de construtivo. A natureza em acção, independentemente dos efeitos nos humanos, não é destruidora. Um terramoto, um furacão, uma cheia, tudo destrói o que foi construído. Antes disso, são acção, são edificação da natureza.
A história da humanidade é o património genético do labor, os feitos e as obras emolduradas em livros que enobrecem a espécie. Sedimentam o tempo que passa e o suor humano que se enxaguou em obras, emblemáticas ou tão singelas como o lar onde habitamos. No deve e haver da humanidade, o fazer sobrepõe-se à força arrebatadora da destruição. Porém, a fragilidade de tudo o que foi feito fica à mostra sempre que a destruição fala mais alto. De como anos a fio de perseverante edificação se esboroam perante uns instantes de força destruidora indómita.
Autor: Paulo Vila Maior
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