No entanto, “undo” enfatiza a ideia de devastação de um singelo momento demolidor. Não sei se será por reunir em apenas quatro letras a ruína do que foi desfeito. Já em português exige-se uma palavra mais comprida (oito letras), dando a ideia que o impulso destruidor passa por um esforço que, em muitos casos, fica aquém das energias que o dobro das letras (“undo” e “desfazer”) insinua. Desnudada a ideia que arruinar é um acto simples, muito mais simples do que construir algo. Num abrir e fechar de olhos, o que demorou tempo e consumiu energias é derrubado, semeando a desolação ao ver como tempo e energias dedicadas foram arrebatadas por um breve momento destruidor. “Undo” perfuma a devastação com a singeleza da palavra – tão curta, tão aparentemente anódina e, no entanto, tão avassaladora.
A deambulação etimológica transporta-me ao terreno do niilismo. De como toda a matéria se resume, em última análise, à destruição de tudo. É mais difícil construir, edificar, colaborar numa tarefa que traga obra feita. Leva tempo, exige o melhor da massa cinzenta, reúne a faceta imaginativa que desdobra a melhor essência da espécie humana. Por mais prodigiosa que seja a obra humana ou os feitos da natureza, o que fica à mostra é a sua delicadeza, como anos de esforço podem ser varridos num ápice por uma imparável força devastadora. Onde antes havia paciente construção humana as forças destruidoras esmeram uma fantasmagórico despovoamento. Anos e anos de labor humano diluídos em nada por instantes de imparável destruição.
A desconstrução pode vir de actos humanos como ser obra da natureza. No sempre inacabado balanço da história da humanidade, ainda está para estimar o deve e haver entre o movimento construtivo que edifica e os impulsos ensandecidos dos Homens que ousam destruir o que levou tanto tempo a compor. As guerras são o paradigma da estupidez humana que vem recalcar o que foi erguido e entretanto derrubado por bombas que eclodem com a sua força arruinadora. Ou as relações humanas que se diluem em nada, quando o mais difícil foi cimentar pacientemente laços e afectos.
Impressiona-me mais a força destruidora da natureza, cataclismos vários que a mão humana é incapaz de domar. Terramotos que derrubam casas como se fossem frágeis castelos de cartas. Furacões que sopram ventos diabólicos que levantam árvores, telhados, pesadas estruturas metálicas como se tivessem a leveza de uns gramas. Cheias que tudo inundam e interrompem a vida habitual dos povos, cercados pela água enlameada que destrói haveres acumulados em anos e anos de suor do trabalho. Tudo se extingue na voracidade de uns instantes. A fragilidade humana diante da poderosa natureza, indomável quando grita através da fúria dos elementos.
Dir-se-ia que a natureza que protesta encerra, no seu amplexo devastador, a essência niilista. O não que se sobrepõe à paciente elaboração das obras humanas que se entretecem à medida que as folhas do calendário são desfolhadas. Contudo, a manifestação da natureza, mesmo que tenha a voz ensurdecedora da destruição, é obra construtiva. É construção da natureza, mesmo quando a sua voz ecoa nos prantos das vítimas da devastação dos elementos indomáveis. Poderão os efeitos da natureza gritante estender a lamentação pela destruição entristecedora, o travo amargo de derrubar o que fora laboriosamente edificado. Há nisso um vento destruidor da gesta humana. Olhando apenas às forças da natureza, elas contêm algo de construtivo. A natureza em acção, independentemente dos efeitos nos humanos, não é destruidora. Um terramoto, um furacão, uma cheia, tudo destrói o que foi construído. Antes disso, são acção, são edificação da natureza.
A história da humanidade é o património genético do labor, os feitos e as obras emolduradas em livros que enobrecem a espécie. Sedimentam o tempo que passa e o suor humano que se enxaguou em obras, emblemáticas ou tão singelas como o lar onde habitamos. No deve e haver da humanidade, o fazer sobrepõe-se à força arrebatadora da destruição. Porém, a fragilidade de tudo o que foi feito fica à mostra sempre que a destruição fala mais alto. De como anos a fio de perseverante edificação se esboroam perante uns instantes de força destruidora indómita.
Autor: Paulo Vila Maior
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