Biografia por: Fernando Correia da Silva
QUANDO TUDO ACONTECEU...
- 1450 (?): Ano provável do nascimento de Bartolomeu Dias.
- 1458: Os portugueses conquistam Alcacer-Ceguer.
- 1460: Morte do Infante D. Henrique.
- 1471: Descoberta da Mina por João de Santarém e Pêro Escobar.
- 1474: Ainda como Príncipe, D. João começa a sistematizar a política atlântica.
- 1481: Morre D. Afonso V e sobe ao trono D. João II.
- 1483: Diogo Cão descobre o rio Zaire.
- 1484: À punhalada, D. João II mata o conspirador duque de Viseu e depois manda executar o outro, que é o bispo de Évora.
- 1486: Fundação da Casa dos Escravos.
- 1487: A mando de D. João II, Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva partem para o Oriente para localizarem o Preste João. Bartolomeu Dias, também por incumbência de D. João II, dobra o Cabo Tormentoso, que será depois chamado da Boa Esperança.
- 1491: Morte do Infante D. Afonso, filho de D. João II.
- 1494: Tratado de Tordesilhas entre Portugal e Castela.
- 1494/97: Bartolomeu Dias exerce o cargo de recebedor no Armazém da Guiné.
- 1495: Morre D. João II e sobe ao trono D. Manuel I.
- 1497: Vasco da Gama parte para a Índia; é acompanhado até Cabo Verde por Bartolomeu Dias, o qual ruma depois para S. Jorge da Mina.
- 1498: Vasco da Gama chega à Índia.
- 1500: Na sua viagem para a Índia Pedro Álvares Cabral descobre o Brasil; é acompanhado por Bartolomeu Dias que virá a naufragar e morrer frente ao Cabo Tormentoso (da Boa Esperança?).
Na Antiguidade Clássica, Cláudio Ptolomeu foi o mais famoso dos cosmógrafos. Na Astronomia colocou a Terra no centro do Universo. Na Geografia prolongou a Ásia e a África até à Terra Austral, convertendo o Índico em mar interior. Durante 14 séculos ninguém contestou o seu sistema.
Mas no século XV d.C., ali na proa da Europa, D. JOÃO II, el-Rei de Portugal, atreve-se a duvidar da geografia de Ptolomeu. Em 1486 Diogo Cão, navegador que anteriormente descobrira a foz do Zaire, anunciara a El-Rei que certamente haveria passagem do Atlântico para o Índico porque, dos 18 aos 22 graus de latitude Sul, a costa africana inflectia para sueste e mais para a frente, até onde alcançava a vista, continuava a correr no mesmo sentido.
Em 1487 o monarca resolve tirar a limpo algumas das suas dúvidas. Manda que, por terra, PÊRO DA COVILHÃ e Afonso de Paiva marchem para Oriente e saibam novas quer do Preste João, quer da navegabilidade do Índico. Manda também que Bartolomeu Dias, navegador e seu escudeiro, verifique se a África está, ou não, ligada à Terra Austral. Ou seja: se por mar é, ou não, possível contornar a África para alcançar a Índia.
(...)Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!
(Em MENSAGEM - Fernando Pessoa)
Navegadores experientes há muitos. Mas Bartolomeu Dias terá frequentado as aulas de Matemática e Astronomia da Universidade de Lisboa e serviu na fortaleza de S. Jorge da Mina. Está portanto habilitado quer a determinar as coordenadas de um local, quer a enfrentar tempestades e calmarias como as do Golfo da Guiné. É quem El-Rei D. JOÃO II escolhe para chefiar a expedição em busca da passagem para o Índico.
Em fins de Agosto de 1487 Bartolomeu Dias larga de Lisboa, comandando duas caravelas e uma naveta com mantimentos e sobresselentes. Pêro de Alenquer é o piloto da caravela capitânia. A outra é comandada por João Infante e a naveta por Diogo Dias, irmão de Bartolomeu.
A bordo levam dois negros e quatro negras, caçados por Diogo Cão na costa ocidental da África. Bem alimentados e bem vestidos, serão largados na costa oriental (se a alcançarem...) para que testemunhem, junto dos povos daquelas bandas, sobre a bondade e a grandeza dos portugueses e, ao mesmo tempo, recolham informações para se poder alcançar o reino do Preste João.
Em Outubro a frota atinge a Serra Parda e o Cabo do Padrão (Cape Cross, é como os ingleses irão chamá-lo mais tarde), últimos locais tocados por Diogo Cão, a cerca de 22 graus de latitude Sul. Estão no litoral da futura Namíbia, deserto, agreste, perigoso, e que virá a ser chamado Costa do Esqueleto, por causa dos muitos naufrágios que irão ali a ocorrer.
Bartolomeu calcula que já deve estar perto do extremo sul da África (engana-se como se enganou Diogo Cão...) e manda que a naveta dos mantimentos, comandada pelo seu irmão Diogo, ancore e espere na recém-descoberta e cognominada Angra Pequena, enquanto as duas caravelas demandam o fim do continente.
Já muito longe, cerca dos 29 graus de latitude Sul, junto à foz de um rio que depois será chamado de Orange, ventos contrários retêm as duas caravelas durante cinco dias e cinco noites. Por causa das muitas voltas que deu até conseguir dobrá-lo, a um cabo próximo Bartolomeu põe o nome de Cabo das Voltas.
Chuva, tempestade, tormenta... Durante 13 dias, navegando à capa, são fustigados e assoprados talvez para 40 graus de latitude Sul. Os barcos são pequenos, o ar e o mar são muito frios, os marinheiros não conseguem dominar as velas e todos já se dão por mortos. Mas, felizmente, o tempo amaina e Bartolomeu, auxiliado por Pêro de Alenquer, vira o leme para leste. Durante dias navegam e navegam porém terra não avistam, atordoados nautas...
Bartolomeu manda então rumar para norte. Ao fim de alguns dias enxergam altíssimas montanhas. Enxergam mas por bombordo, não por estibordo como esperavam. Concluem que já estão a singrar pelo Índico, não mais pelo Atlântico. Tocados pela tormenta, sem darem por isso tinham dobrado o extremo sul da África, descobrindo assim o caminho marítimo para a Índia.
Durante Dezembro bordejam a costa que inflecte para nordeste e, justamente porque é Dezembro, chamam Natal àquela região. Descobrem uma angra a que dão o nome “dos Vaqueiros” por causa das muitas vacas e pastores que por ali avistam. Com muitas recomendações e sinais de amizade, ali desembarcam os dois negros e as quatro negras caçados por Diogo Cão. Acham mais à frente a foz de um rio que designam “do Infante” (futuramente os ingleses dar-lhe-ão o nome de Great Fisher River). Chegam a um ilhéu e ali erguem um padrão, “o da Cruz”.
Os marinheiros estão exaustos e não entendem o entusiasmo do comandante, temem que ele queira navegar até à Índia. A naveta dos mantimentos ficou longe, no lado de lá, na costa ocidental, e loucura é navegar sem contar o seu apoio. Entre queixosos e sublevados falam com Bartolomeu. Este manda lançar ferro numa angra e convida as tripulações das duas caravelas a descer a terra. Pergunta-lhes o que acham que se deve fazer e eles opinam que o melhor será regressar ao Reino. Bartolomeu pede-lhes que aceitem navegar para norte durante mais alguns dias a ver que novidade encontram. Eles anuem e para norte partem as duas caravelas. Passam-se os dias e nada de novo acontece. A marinhagem volta a reclamar, já levanta fervura a rebelião. A contragosto, mas para evitar o motim, Bartolomeu manda inverter o rumo. No regresso, alcançam outra vez o ilhéu de Santa Cruz. Do padrão que ali assentara Bartolomeu se aparta como se abandonando um filho. Tão longe tinha chegado ele e o principal que perseguia quedara fora do seu alcance; não por quebra da sua vontade mas por quebra da coragem dos seus homens...
Cruzam vasta baía a que os ingleses, mais tarde, chamarão Mossel Bay. Mais à frente avistam o cabo do fim da África, o Tormentoso. Bartolomeu desembarca na praia que ladeia o escalavrado penhasco. É o dia 3 de Fevereiro de 1488. Calcula a latitude pela altura do sol e na carta marca o ponto: são 34 graus e 22 minutos de latitude Sul. Ao alcançar a Serra Parda e o Cabo do Padrão, Diogo Cão chegara apenas aos 22 graus; ficara portanto muito longe do fim do mundo. Junto ao Cabo, Bartolomeu implanta outro padrão, o de S. Tiago.
Antes de regressar à caravela capitânia, mais uma vez contempla o Cabo. Mar calmo e tempo claro. “Tormentoso, mas porquê, se a tormenta já lá vai?” pergunta Bartolomeu. “Assinalas o caminho para a Índia, por isso vou chamar-te da Boa Esperança...”
Mas Bartolomeu sente, pressente que está a afagar um lobo adormecido, arrepio...
Bartolomeu faz o relato da viagem e D. JOÃO II sorri, concorda que o Cabo seja chamado “da Boa Esperança”.
Bartolomeu fica à espera do convite de El-Rei para comandar a primeira frota que leve os portugueses até à Índia. Vai ter muito que esperar... El-Rei não prossegue os Descobrimentos enquanto não obtiver a garantia que o Atlântico será por todos considerado (principalmente pelos castelhanos...) um mar português. E tal só virá a acontecer em 1494 com a assinatura do Tratado de Tordesilhas entre os dois Estados da Península Ibérica. Tratado que, por insistência de D. JOÃO II, desloca o meridiano divisor dos interesses portugueses e castelhanos de 100 para 370 léguas a oeste de Cabo Verde. Para ocidente da nova linha, meia-esfera para os castelhanos; para oriente, meia-esfera para os portugueses. É uma nova partilha que irá garantir a Portugal, para além da África e da Índia, também a posse sobre o Brasil, território oficialmente ainda por descobrir.
Em 1494 Bartolomeu, em Lisboa, assume funções de recebedor na Casa da Guiné. Funções que irá desempenhar até 1497, três anos de vidinha calma e rotineira. Porém, em noites alternadas, persegue-o um sonho, sempre o mesmo: ele a fazer-se ao mar e, a meio da viagem, quando roda o timão, lá da proa um lobo enorme corre e salta-lhe à garganta, pesadelo, arrepio.
Em 1495 morre D. JOÃO II e D. Manuel I sobe ao trono.
Em 1497 o novo monarca resolve mandar aparelhar a primeira armada que levará os portugueses até à Índia. Entrega o comando a Vasco da Gama. Bartolomeu sente-se injustiçado mas colabora nos preparativos da expedição. Ao novo comandante faz um relato minucioso das dificuldades que tivera de enfrentar. Opina sobre a construção das quatro naus, opõe-se às dimensões exageradas, recomenda maior solidez dos cavernames, também a duplicação do equipamento náutico e a abundância de mantimentos.
A armada larga a 8 de Julho de 1497. O piloto da nau capitânia é Pêro de Alenquer, que já fora o piloto de Bartolomeu quando, pela primeira vez, fora dobrado o Cabo da Boa Esperança. Bartolomeu acompanha a frota mas comandando nau que se dirige, não para a Índia, mas para S. Jorge da Mina, para onde El-Rei D. Manuel I o destacara.
Arribam às Canárias e depois a Santiago de Cabo Verde. Reabastecem as naves e largam a 3 de Agosto. Alcançam o Golfo da Guiné e Bartolomeu saúda os companheiros com uma salva de pólvora seca, larga a frota e ruma para S. Jorge da Mina enquanto Vasco da Gama “toma barlavento”, segredo da marinharia portuguesa: deixa que o vento o empurre para sudoeste; depois de léguas e léguas de navegação, o vento irá girar, gradualmente, para sueste; as naves descreverão um grande arco de círculo no Oceano retornando à costa ocidental de África, porém em latitudes muito mais ao sul.
Bartolomeu contempla as quatro naus que se afastam e desaparecem no horizonte. Dá um murro na amurada, frustrações...
Em 1500, Bartolomeu já está outra vez em Lisboa. Em Março, comandada por PEDRO ÁLVARES CABRAL, larga do Tejo a segunda armada para a Índia, 13 naus de alto bordo, 1200 homens. Bartolomeu comanda uma das naus mas o seu destino não é a Índia, é Sofala, na costa oriental de África. Mais uma vez lhe é negado o principal... A ele, que abrira o caminho para Índico...
Ao alcançar o Golfo da Guiné, a armada “toma barlavento”. Mas desta vez alarga por demais o arco de círculo no Atlântico sul e Bartolomeu suspeita que, para além da Índia, haverá ainda a missão de oficializar o descobrimento de algum território no litoral oeste do Oceano. Não se engana. A 22 de Abril avistam terra. E a 24 lançam ferro numa angra a que é dado o nome de Porto Seguro (nome que será mantido na República do Brasil).
Depois da jubilosa convivência com os nativos inocentes e desnudos, é rezada a primeira missa nas Terras de Vera-Cruz. A 2 de Maio os portugueses levantam ferro e abalam, rumo à Índia.
A VINGANÇA DO CABO
À vista do Cabo da Boa Esperança, a 23 de Maio de 1500, súbita e furiosa tempestade afunda quatro naus da armada de PEDRO ÁLVARES CABRAL, uma delas a de Bartolomeu Dias.
Naquela aflição Bartolomeu ouve um uivo, será o vento, será o lobo a preparar o salto lá na proa, arrepio... “Boa Esperança ou Tormentoso?” pergunta ainda, enquanto se debate e vai sendo engolido pelas ondas.
Neste episódio Camões identificará a vingança do Cabo, metamorfose do gigante Adamastor:
Eu sou aquele oculto e grande Cabo
A quem chamais vós outros Tormentório
(...)
Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu, suma vingança.
No sec. XX, para Bartolomeu Dias, Fernando Pessoa lavrará o seguinte epitáfio:
Jaz aqui, na pequena praia extrema,
O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro,
O mar é o mesmo: já ninguém o tema!
Temer ou não temer? Tormentoso ou Boa Esperança?
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